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Agnes, Luca e Veneza

Há dois anos Agnes estava na Itália com sua amiga, na cidade de Veneza, quando aconteceu um evento que mudou sua vida por completo. Quando chegaram na cidade já era noite e entre becos e ruelas lá foram elas à procura do hotel. É estranho quando se conhece uma cidade pela primeira vez no escuro, ela fica com outra beleza, emanam outras sensações. O suposto hotel ficava no final de um beco atravessando um arco romano que era tão baixo que se Agnes estendesse a mão ela conseguia tocá-lo.

“Isso não é um hotel, Agnes, está muito estranho isso aqui…” disse Liz.

E ela tinha razão. Agnes não pôde dizer nada porque encontrou esse lugar suspeito em um site que dizia ser uma experiência surreal para todos os visitantes da cidade. Calada ela olhou para o mapa e para a porta duas vezes, para ter certeza que estava no lugar certo. Era uma porta de mogno maciça com dobradiça e estrutura de metal dourado envelhecido. No centro da porta tinha uma caixa do mesmo metal envelhecido. “O puxador deve estar mais dourado do que o restante dos metais porque deve ser muito tocado, e isso é um bom sinal…Não?” Pensou Agnes. Abriu a portinhola e lá dentro tinha um molho de chaves, assim como tinha instruído o hotel.

“Agnes, tá escutando isso?” Falou Liz com os olhos esbugalhados, com as mãos tremulas cutucou o ombro de Agnes.

Liz era alguns anos mais velha que Agnes, era ruiva com cabelos ondulados que batiam no meio das costas. Ela era um pouco mais baixa que Agnes e tinha sobrancelhas bem marcadas e bonitas. Os olhos eram castanho-amarelados e nesse momento eles estavam bem abertos, olhando para Agnes.

“O que? Eu não estou escutando nada Liz? O que você ouviu?” Falou baixinho, quase sussurrando, como se estivesse prestes a cometer um crime ao pegar o molho de chaves.

“Exatamente, eu não estou escutando nada, absolutamente nada…Isso é muito estranho…” respondeu Liz.

Agnes revirou os olhos em desprezo com o que tinha acabado de ouvir, no seu core ela sabia que desde que passaram o arco o silêncio se instaurou, mas ela não podia admitir isso para Liz. Ela se virou para a porta e tentou a primeira chave do molho na porta. Eram três chaves e a primeira foi fácil acertar pois era do mesmo metal envelhecido da porta medieval. “CLACK, CLACK” fez a porta com as duas voltas da chave, e em seguida se abriu com um empurrão.

Agnes tinha o cabelo loiro escuro com nuances mais claras, era liso com as pontas meio onduladas e rebeldes. Ela era mais alta, mas não tanto que afetasse sua postura. Seus olhos eram âmbar e ao redor da pupila eram quase vermelhos. Ela era uma mulher linda, apesar de se achar peculiar e desengonçada.

Ao abrir a porta ela se deparou com uma parede de pedras e sentiu o frio que emanava delas, que fez sua nuca arrepiar. Apalpou a parede perto da porta por algum interruptor e “click” se acenderam as luzes, o alívio resultou em uma longa expiração.

“Ufa, pelo menos energia tem…” disse baixinho.

Elas pegaram suas respectivas malas e entraram. Dentro só tinha uma direção a ser seguida, um longo e estreito corredor que terminava em um lance de escadas. Subiram três andares, fazendo pausas para respirar pois o peso das malas transformou essa tarefa em algo cansativo. Ao chegarem no terceiro andar se viram de frente a uma porta sem personalidade, apenas uma porta de madeira, sem número. Elas entraram e se depararam com um ‘salotto', com paredes de pedra, vigas de madeira expostas, onde tinha um sofá de veludo verde escuro e uma lareira acessa porém quase de final. O quarto era pequeno com duas camas estreitas e entre elas havia um quadro na parede. O quadro, óleo sobre tela, mostrava uma cena de Veneza de séculos passados em festa, o tradicional carnaval, todos com máscaras e fantasias, bebendo e dançando.

“Bons tempos hein Liz, olha…”soltou Agnes enquanto apontava o dedo indicando o quadro. Liz já estava tão exausta que só concordou com a cabeça.

Depois de um tempo arrumando as coisas e se instalando finalmente pegaram no sono. No dia seguinte Agnes levantou, e como costuma fazer em casa, correu para abrir a janela. O dia estava lindo e ensolarado, e ela conseguia ouvir o ruído e a vida da cidade. “Ufa…” pensou. Tentou encontrar alguém na ruela que conseguia ver abaixo, mas se foram alguns minutos e ela desistiu.

“Vamos, vamos dona Liz! Vamos desbravar a cidade!” Disse Agnes, que era claramente uma pessoa matinal. Liz coçou os olhos com as mãos, se sentou na cama lentamente e assim ficou por alguns longos minutos até que em fim se levantou para se arrumar.

Elas andaram a manhã inteira, passaram em vários pontos turísticos, fizeram um passeio de barco, foram na Piazza San Marco, e finalmente se sentaram para almoçar e tomar algo refrescante. Elas comeram, e resolveram ficar bebendo na Piazza conversando e observando o movimento. O sol estava se pondo quando se levantaram, um pouco embriagadas, para voltar ao hotel.

No caminho Agnes parou e pressionou o indicador contra o vidro da vitrine de uma loja com os olhos bem abertos e encantados. Era uma loja pequena toda coberta de adornos, máscaras, objetos antigos, tapeçarias, e manequins com roupas típicas de bailes venezianos de séculos passados.

“Liz…Eu t-e-n-h-o que entrar… Eu quero, preciso experimentar esse vestido” disse Agnes ainda com o dedo fixo no vidro. Liz deu de ombros “Ok, vamos ver se está aberta”.

“Ciao!” Gritou Liz ao entrar “Ciao, alguém? A loja está aberta ainda?”

Ela entrou se desviando dos objetos no corredor de dois palmos que restava para a passagem. Logo em seguida entrou Agnes um pouco mais estabanada esbarrando em algumas máscaras. “Concentra Agnes, não derruba nada pelo amor…” pensou.

“ALOUU!” Gritou Agnes, e logo Liz se vira pra ela com uma cara de desaprovação.

“Ag, você tá bêbada?” disse Liz sussurrando, “Vamos embora, não tem ninguém aqui, amanhã a gente volta é do lado do hotel” disse enquanto olhava para cima e para os lados esmerada com os objetos da loja.

“Ciao, buona sera!” Elas ouviram uma voz masculina aveludada saindo do fundo da loja.

“Já era hora, pensei que não viriam…” disse o atendente ao sair detrás de uma estante que ficava ao lado do caixa. As duas se olharam sem entender o que ele quis dizer com aquilo. Ao voltar o olhar para o homem, as duas ficaram em silêncio para assimilar a beleza do estranho. Alto, esbelto, com o maxilar marcado. Seu nariz era grande porém harmonizava com todos seus traços. Mas o que mais chamou a atenção de Agnes foi a cor dos olhos. Ele eram verdes em um tom que ela nunca tinha visto, mas de alguma forma era familiar, ela não sabia como mas quando o viu se sentiu segura.

“Buona sera…” engoliu seco “eu queria experimentar um desses vestidos lindos com pannier…É possível?”

O homem foi andando em direção a ela, e seu coração inexplicavelmente começou a acelerar. Ele passou Liz e parou a um metro de distância, ao lado de um manequim com um vestido azul escuro com bordados e babados em dourado antigo, uma verdadeira obra de arte. Ele colocou a mão no ombro do manequim, como se estivesse apoiando em um amigo.

“Mi chiamo Luca, prazer” falou estendendo a mão direita para Agnes, que congelou por um segundo eterno antes de estender a sua. Quando as mãos se tocaram ela sentiu uma sensação estranha quase entorpecente que a deixou tonta. Ela conseguia ouvir seu coração batendo acelerado em seu tímpano, seu estômago parecia ter levado um golpe, foi quando os olhares se encontraram que ela voltou para seu corpo.

“Meu…nome é…” ela falou, ainda se recompondo.

“Agnes” Disse Luca.

Agnes não estava entendendo nada, muito menos Liz. “O que estava acontecendo, o que é isso…” era o que passava na sua mente. Luca se inclinou para o lado para cumprimentar Liz

“Ciao Elisabeth, comme stai?”

Nessa hora Liz arregalou os olhos e começou a se perguntar se tinham bebido demais durante a tarde, e o quão estranho estava o clima naquela pequena loja.

“Agnes… Os anos se passam, e seu gosto continua o mesmo” falou Luca calmamente enquanto ia desamarrando o corpete do manequim. “Esse vestido é seu…sempre será”. Agnes olhou pra Liz procurando alguma explicação nas expressões faciais dela, mas esta olhou de volta com a mesma confusão mental.

“Umm, Luca, certo?” Perguntou Agnes, sem esperar a confirmação continuou “Como você sabe nossos nomes?” Passou a mão no cabelo, colocando para trás das orelhas.

“Vieni!” Chamou Luca com o vestido gigante em mãos, parecia até que estava carregando uma pessoa “Vamos, você não quer experimentar?”.

Sem pensar e já consumida pela curiosidade Agnes começou a seguir Luca. Era como se algum fio invisível saísse dela e se ligasse a ele. “O que está acontecendo? Da onde eu conheço esse homem? Porque eu estou me sentindo assim tão esquisita…Será que eu vou morrer?”Pensou.

Ele abriu uma cortina de veludo bordô desbotada que escondia um espaço relativamente grande em comparação com a loja, onde tinha um espelho de corpo inteiro com uma moldura dourada de madeira entalhada. O provador não condizia com o restante da loja, que era uma bagunça. Luca acenou com o braço para que ela entrasse e, assim como alguém hipnotizado andaria, entrou Agnes. Ele se virou e fechou a cortina antes que Liz pudesse entrar. Luca então colocou o vestido no chão e abriu o corpete e a saia de maneira que Agnes só teria que dar um passo no centro para poder subir o vestido.

“Você não vai sair?” Perguntou Agnes timidamente enquanto recuava.

Luca soltou um sorriso com a pergunta e balançou a cabeça em desaprovação.

“Eu vou me virar, pode ser?” Respondeu Luca já virando as costas para Agnes. Agnes, começou a tirar a roupa. Tentou fazer tudo o mais rápido possível para que pudesse entrar logo no vestido, tirar uma foto e ir embora. Ela colou um pé, depois o outro e subiu o vestido colocando os braços em suas respectivas mangas. Ela ainda não tinha levantado a cabeça para se olhar no espelho.

“Pronto” sussurrou.

Luca se virou e viu as costas nuas de Agnes, que aguardava que ele entrelaçasse o corpete. Ele ficou quase sem ar, e com a mão tremula passou o cabelo dela para o lado. Ele colocou as duas mãos na cintura dela e acariciando o tecido foi indo em direção aos cordões na parte de baixo do corpete. Ele começou o primeiro cruzamento do corpete quando ela levantou a cabeça para se ver e nesse instante ela reparou no silêncio absoluto e familiar que caiu sobre o provador. No reflexo ela podia ver Luca como ele estava emocionado ao fazer cada cruzamento do corpete. Assim que ele chegou na parte final respirou fundo, como alguém que está prestes a pular de alguma altura, e lentamente terminou o laço. No fechamento do laço de cordão mais precisamente no toque final, de cordão com cordão, uma luz intensa nasceu do nó e se projetou na loja inteira deixando todos temporariamente cegos.

Agnes abriu os olhos, e nas primeiras duas piscadas ela não conseguiu enxergar nada. Quando finalmente sua visão ficou nítida ela se deparou com o belo par de olhos verdes de Luca.

“Bienvenuta amore” disse a voz aveludada “Você voltou em dia de festa!”

Agnes se apoiou em suas mãos e se levantou rápido em reflexo do susto, com o coração na boca e ofegante como se tivesse corrido uma maratona.

“O que tá acontecendo?” Ela tentou gritar mas saiu mais como um sussurro.

“Calma Ag, você voltou no tempo, pra esse dia…” explicou Luca, calmamente “Você quer uma água?” Completou.

Agnes só colocou as duas mãos na cabeça em desespero e começou a balançar em negação

“Eu só posso estar drogada, é a única explicação, me drogaram…” falou, agora quase chorando. Luca pegou em suas duas mãos e apertou firme “Olha pra mim” Agnes abriu os olhos, “você me conhece a vida toda, só não está se lembrando ainda, fique calma” sem pensar duas vezes ele se inclinou para beijá-la. O chão se abriu e Agnes caiu em queda livre em uma escuridão infinita, a única coisa que conseguia ouvir eram seus próprios batimentos e sua respiração. De repente memórias de uma vida toda começaram a se passar em “flashes”. Ela conseguia se ver em terceira pessoa em cada momento. Ela criança em uma casa nada modesta do século dezesseis, o casamento de seu pai com sua madrastra, aulas de piano, passeios por Veneza e finalmente os olhos verdes. Eles se afastaram, Agnes podia ver que Luca claramente estava afetado com tudo o que estava acontecendo porque estava com a respiração acelerada. Agora um pouco mais calma ela conseguiu ver que Luca estava com uma roupa típica veneziana.

“Como conseguimos isso?” Perguntou Agnes, que agora sabia que tudo tinha sido planejado com muita cautela, e amor, para quela ela pudesse enganar a morte, e ele também.

“Não sei, só sei que agora temos tempo…” falou enquanto abraçava sua amada finalmente, depois de tanta espera. Eles se beijavam ofegantes e apaixonados até Agnes interromper o momento com uma cara de susto.

“Cadê a Liz?”

“Ficou no futuro…” respirou e sorriu para passar segurança para seu amor, “Ela vai ficar bem…Um bom guia nunca se perde…VEM!” Pegou a mão de Agnes, abriu a cortina do provador para revelar a loja que agora expunha várias tapeçarias, alguns tecidos e aparatos, sem bagunça. Eles fizeram o caminho até a porta e assim que abriram já perceberam o ruído de festa na cidade. Agnes deu uma risada de nervoso, e apertou bem a mão de Luca.

“Andiamo dai!”

FIM


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